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Gravner РCome̤ando 2010 com a ta̤a direita

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Beda

Eu bem que quis culpar a idade pelo réveillon que acabou tão cedo esse ano, mas nem é verdade. Primeiro porque eu não tenho D.N.A. o suficiente pra isso – ainda que os cabelos já estejam fraquejando – e depois que o plano para a noite, muito muito confortável, inevitavelmente terminaria em sonolência: vinho e mais vinho, cozinha em casa, filme no sofá com chuvinha barulhando lá fora.

O cardápio, cuidadosamente pensado e maltrapilhamente produzido ao longo do dia, ia da saladinha verde com feta, figo e castanhas de cajú a um creme de iogurte com suspiros e cerejas, passando pela ousadíssima torta de carne com cheddar e foi devidamente escoltado por uma garrafa de Breg 2000 de Josko Gravner – que mais uma vez fez BONITO, encaixando-se perfeitamente à salada e nos deliciando a cada gole.

Acho que não foi a data de nascimento obviamente não-avançada o que nos impediu de ficar acordados madrugada a dentro… Teve mais a ver com a comilança, o conforto do sofá e os vinhos.

Conheci Josko Gravner em 2008, quando fui visitá-lo em Gorizia, Friuli, para acompanhar uma entrevista para um jornal brasileiro, logo antes de voltar a Verona para os intensos dias de degustação da minha primeira ida à tradicional feira de vinhos italiana. Correndo a 180, fizemos o percurso Milão-Gorizia em 4 horas tentando chegar até lá antes do pôr-do-sol. A cidadezinha, bastante grande até, é simpatica e agradável, com casas antigas e gente bonita na rua e os vinhedos já visíveis aqui e ali nas colinas.

Clima frio, céu cinzento, com o rio Isonzo separando a cidade dos campos. A fronteira é logo ali, seguindo uma parte do rio – meu celular apitava a cada quinze ou vinte minutos alternando entre “A Claro está com você na Itália!” e “A Claro está com você na Eslovênia!” – e há uma minoria eslovena na região, da qual faz parte a familia Gravner. De origem alemã, seus antepassados se fixaram em Oslavia por volta do seculo 16 e se fundiram à população local, criando as raízes profundas nas quais se baliza Josko, da 4a. geração de “camponeses do vinho”, como ele mesmo se chama.

A fronteira com a Eslovênia vista do quintal de Gravner. Algumas ânforas georgianas ao fundo e…
um gol? Nah.

De voz e expressão graves (sem jogo de palavras), olhar profundo e dedos grossos, com os cantos das unhas negros do trabalho na terra, Josko e seu filho Miha nos guiaram pelas instalações amplas mas simples da casa da família, que também servem de base para todas as operações vinícolas.  Miha, falecido em um acidente há pouco menos de um ano, completava as falas do pai e via-se uma sintonia entre os dois que, sem a menor dúvida, hoje maltrata o coração de Josko. Há poucos meses, logo após o acidente, estive novamente com ele para encontrar olhos perdidos no vazio e em um silêncio triste sempre que parava de falar sobre sua terra, sua história e seu vinho.

Depois do brusco falecimento de Miha,
Gravner perdeu seu filho e herdeiro “enológico”
.

No entanto, em ambas as visitas, sempre que tratava de nos contar sobre como começou a produzir ou como passou a utilizar as famigeradas ânforas, Josko assumia uma energia diferente. Nada da empolgação febril dos ativistas ou juvenil dos que recém-descobriram novas técnicas e resultados. Era uma energia sóbria e vibrante, uma segurança e confiança que reverberam no vozeirão meio rouco enquanto eles nos dizia que não podia mais tolerar que lhe dissessem a cada cinco anos que o que ele faz está ultrapassado. (Dá pra ter uma idéia disso nos vídeos abaixo – produção do multi-homem Filippo Polidori, uma espécie de embaixador de Gravner)

Josko – assim como o filho – não estudou enologia. Aprendeu muito do que sabe com o pai, depois com colegas de profissão em muitos lugares, sendo que a Geórgia tenha sido, sem dúvida, o mais importante ou marcante.

Gravner fora um dos mais inovadores produtores do nordeste italiano, utilizando técnicas hoje amplamente difundidas mas, a seu tempo, nunca antes aplicadas entre os vinhateiros da região – controle de temperatura, fermentação malo-lática, uvas internacionais…

A partir do final da década de 80, cansado das contínuas “revoluções enológicas”, passou a pesquisar o que se fazia nos tempos antigos, entre os primeiros povos a produzir vinho de maneira cuidadosa e consciente. Dos romanos, passando pelos gregos, egípcios, fenícios, chegou até a parte sul da antiga União Soviética, berço histórico da produção de vinho.

Josko Gravner com os grandes tóneis de madeira neutra, utilizados na vinificação dos tintos. Entreveêm-se as “botti” para amadurecimento dos vinhos à esquerda.

Descobriu aí técnicas que permaneciam intactas há séculos: a fermentação do vinho dentro de ânforas de barro, com longo contato com as cascas, em particular das uvas brancas. Encantou-se com a pureza do processo, a mínima intervenção do homem. Seu papel permanecia focado principalmente nos vinhedos, em busca da melhor e mais “limpa” fruta.

Desde então, Gravner passou a adaptar-se, gradualmente, a essas técnicas ancestrais. Seus vinhedos são cultivados de maneira artesanal, totalmente à mão e absolutamente sem produtos sintetizados. Ele construiu um pequeno lago em meio a alguns deles, buscando atrair insetos, pássaros e restaurar uma parte do equilíbrio rompido pela presença do trabalho do homem. As plantas são cuidadas individualmente por ele e poucos ajudantes seguindo os ciclos lunares e astrais, conforme a experiência e os conhecimentos pessoais de Josko – ele faz questão de dizer que não segue a biodinâmica, embora utilize o calendário da bio-guru Maria Thun para todos os processos da produção.

Muita uva é descartada: os rendimentos são baixíssimos, quase inviáveis financeiramente. De acordo com ele, seu vinho é feito antes de tudo para si mesmo – portanto os resultados financeiros são de pouco interesse. O excedente da produção de cerca de 20.000 garrafas (de cada um dos rótulos principais – leia-se: brancos – e não mais de 5.000 dos secundários – leia-se: tintos) é vendido a preço de ouro e disputado em todo o mundo por fãs, colecionadores e curiosos em geral.

Um dos principais e mais antigos vinhedos da família Gravner, replantado em alta densidade e produzindo baixíssimos rendimentos: em muitas plantas amadurece somente um cacho.

O processo de produção é bastante simples: as uvas são prensadas e colocadas dentro das imensas ânforas – trazidas da Geórgia sob encomenda, enterradas em uma espécie de adega subterrânea – sempre de acordo com os ciclos lunares. Daí até seis ou sete meses depois, praticamente não há dedo do homem: a natureza segue seu curso, sem controles de temperatura artificiais, sem acréscimo de leveduras, nada mais que uma pigeage aqui e ali, para manter as cascas misturadas no líquido borbulhante.

Não há filtragem, colagem ou nenhum tipo de tratamento exceto a adição de derivados de enxofre – sem o qual, diz Gravner, é impossível produzir vinho. “Os antigos romanos já o utilizavam e, sem dúvida, não sem motivo. Além disso, a própria fermentação produz uma pequena quantidade e é impossível armazenar vinho sem ele”.

Breg 2007, fotografado em 2008 ainda na Ânfora.
O próximo passo é o tonel de madeira por 4 a 5 anos.
E leva tempo pra beber esse bicho.

A última etapa antes do engarrafamento é o consideravelmente longo envelhecimento em tonéis de carvalho da Eslavônia (não Eslovênia, vejam bem: essa aqui é parte da Croácia, ali por perto). Os brancos passam cerca de 5 anos afinando-se na madeira, enquanto os tintos levam inacreditáveis 10 anos antes de serem engarrafados – se tiverem a oportunidade, experimentem o Pignolo de Gravner, de uma variedade local quase abandonada que é para ele o futuro dos vinhos tintos no Friuli.

2000, a safra do nosso vinho de Ano Novo, foi justamente a última a ser produzida sem o uso das ânforas. Até aí os conflitos – até hoje recorrentes na área georgiana – tinham impedido que fossem levadas em quantidade adequada até a Itália. As técnicas de produção eram praticamente as mesmas, com o vinho fermentando nos grandes tonéis de madeira neutra que hoje servem somente para a produção de tintos.

Para o Breg, Chardonnay, Sauvignon Blanc, Pinot Gris e Riesling Itálico fazem uma combinação rara de uvas que, no que depender da vontade de Josko, não irá se repetir por muitos anos: todos os vinhedos com variedades “internacionais” serão substituídos ao longo da próxima década por apenas dois cultivares – Ribolla Gialla e Pignolo, típicas da região e, para ele, as grandes uvas friulanas. “Meu pai já me dizia que o vinho de Chardonnay e Sauvignon Blanc não podia ser comparado à riqueza do de Ribolla. Como todo jovem impetuoso, não dei ouvidos a ele. Hoje, eu sei.”

Os vinhos de Gravner chegam ao Brasil anualmente em quantidades ínfimas através da Zahil. Se ainda há alguma coisa de 2000 em estoque – e vocês tiverem moedas extras nos porquinhos – apressem-se: o vinho está delicioso e é diferente de tudo o que já provaram antes – cor, textura, sabores. Às cegas de verdade (ou seja, sem poder ver a cor do vinho), é muito difícil dizer se ele é tinto ou branco: o longo contato com as cascas deixa-lhe bastante tanino, assim como a exposição ao ar nas ânforas e barris causa uma oxidação controlada e pouco característica.

De linda cor acobreada (com brilhos alaranjados-roseados provenientes da Pinot Grigio, variedade de casca rosada), perfumes “doces” (faz pensar em geléia de marmelo e de maçã, baunilha, favo de mel e flores brancas) e impecável frescor mesmo com a boa dose de álcool e de taninos presentes, parece ser um parceiro perfeito para os vegetais – normalmente de difícil harmonização.

No almoço com a família Gravner, me serviram uma seqüência de embutidos/salada/torta-de-legumes/queijos completamente acompanhada dos dois brancos e, com exceção de alguns dos queijos, tudo funcionava bem. No nosso jantar, encarou com firmeza a acidez do vinagre balsâmico no molho, o sal e a picância do queijo feta e o dulçor dos figos frescos e não deixou por muito menos a torta de carne, embora não tenha se encaixado à ela.

Feliz ano novo para todos, com taças cheias e vazias à mesa!

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  1. Olá sobrinha e sobrinho,
    Adorei o blog. Gosto muito de vinho mas nunca sei o que comprar para o dia a dia na faixa de até R$30,00, a não ser que já conheça o vinho. Devo acreditar nas recomendações dos vendedores?
    Beijão, e um ótimo 2010 com também ótimos comes e bebes. Tia Ana.

  2. Sensacional o seu texto e sua experiência. Pena que não tenho nem porquinho, quanto mais moedas extras. Venderia meu fígado para comprar esses vinhos, mas por razões óbvias ninguém iria querer compra lo.

    1. Gil,

      ACHO que sem seu fígado ia ficar difícil aproveitar essas garrafinhas, hein…
      Hora dessas a gente prova um Gravner.

      Obrigado pela visita!

  3. Parabéns pelo texto! Infelizmente não tenho como provar este vinho, mas imagino que seja o que tenho procurado há anos. Talvez um dia…
    Obrigado pelo esclarecimento.

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