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O Problema dos Aromas – Final?

Written by

Beda

Este artigo é a terceira parte de uma série. Leia a primeira aqui e a segunda aqui.

O olfato é provavelmente o sentido que menos recebe nossa atenção: estamos dominados pela visão, perdidos em meio aos sons, impotentes diante da força do tato e, quando se trata de nariz, oprimidos pela fumaça dos escapamentos e pelos cheiros intensos da comida óbvia e dos aromatizantes artificiais.

A menos que por puro deleite e apreço pessoal, não buscamos no olfato informações para nossa sobrevivência. Não precisamos treiná-lo: não se pode identificar pelo cheiro um assaltante chegando em meio à multidão, nem um carro por nos atropelar. Quase nunca precisamos consultar o nariz para saber da qualidade da comida: conservantes e datas de validade com boa margem de segurança se encarregam de eliminar riscos.

A conseqüência é que a experiência pessoal fica cada vez mais limitada: a maior parte de nós é capaz de reconhecer aromas da própria infância, mas poucos, pouquíssimos, constroem em seu dia-a-dia um acervo de perfumes e aromas, prestando atenção aos cheiros, exercitando seu olfato e ampliando sua experiência.

“Construir um arquivo de cheiros e exercitar a memória olfativa permite aprender a distinguir no vinho os aromas”, indica outro manual da turma de Carlo Petrini, o Il Piacere del Vino.

Como se não bastasse, a palavra “pessoal” amarrada à “experiência” é determinante: de pouco adianta descrever a um americano ou um francês um vinho com cheiro de cupuaçú ou cocada. Ao mesmo tempo, é pouco útil para um brasileiro falar de sabor de groselha-amarela (gooseberry) e oxicoco (cranberry).

Sem a menor dúvida, alguma padronização é necessária e bem-vinda, já que precisamos “falar a mesma língua” para poder nos fazer entender. A menos que o Tradutor do Google comece a converter nomes de frutas e flores para compostos químicos, precisamos encontrar elementos em comum para que possamos contar, uns aos outros, que tipo de sensações um determinado vinho nos desperta, independentemente da nossa origem, idioma e data de nascimento.

“Concordar as palavras significa, em um certo sentido, limitar o número de palavras à disposição, com o risco de tocar a aridez e de parecer privados de criatividade: mas é uma necessidade irrenunciável”, seguem refletindo os estudiosos do Slow Food.

A Roda dos Aromas, da pesquisadora americana Ann Noble, referência para degustadores desde a década de 80.

É aí que entram a “roda de aromas” da pesquisadora americana Ann Noble; os cursos de degustação de diferentes escolas (as sérias, embasadas em algum método, como as afiliadas à ASI e o WSET); e outras tentativas de dar objetividade à descrição de vinhos, capitaneadas pelo trabalho de instituições como o Centro de Aromas da PUC de Santiago do Chile, o Australian Wine Research Institute (AWRI) e de especialistas como Jean Lenoir, criador do já clássico (e agora muito replicado) kit de aromas, Le Nez du Vin.

Todos partem da análise de componentes objetivamente presentes no vinho e num histórico de percepções humanas, logo, subjetivas, para estabelecer referências comuns, um vocabulário do vinho.

Para muita gente, talvez os mais politizados, o grande problema está em limitar esse vocabulário a referências basicamente européias. Porque cargas d’água devemos falar de amoras, framboesas e groselha, se estamos no Brasil e as pessoas não comem essas frutas no seu dia a dia?

É claro que isso não é exclusividade nossa: em cada país e, até mesmo, em cada região, a experiência olfativa comum varia enormemente, como nos contam Fongyee Walker e Edward Ragg em um excelente artigo da revista Tong sobre o suposto apreço dos chineses pelos vinhos de Bordeaux:

“As “frutas negras” utilizadas por degustadores “internacionais” para descrever algumas variedades – cassis para Cabernet Sauvignon, por exemplo – são, em geral, irrelevantes na China continental onde não somente o cassis é algo desconhecido (mesmo que seja importado) mas onde frutas negras em geral são escassas.”

Walker e Ragg levantam a questão que importa de fato, ao menos pra mim: mais importante do que reclamar uma padronização eurocêntrica, é necessário ensinar a “língua comum”, e, AO MESMO TEMPO, estimular os estudantes a fazer comparações próprias e a encontrar referências próximas a eles, que façam sentido em cada lugar (buscando evitar os absurdos a que os extremos da subjetividade podem levar).

Vejam abaixo duas notas de degustação para o mesmo vinho, um Château Lynch-Bages 1999, elaboradas a partir de uma aula da dupla dada em Maio deste ano em Pequim:

Versão 1

Grená médio+ com lágrimas; o nariz é limpo, em desenvolvimento e de intensidade média+, com aromas de amoras maduras e cerejas vermelhas, carvalho francês, ervas medicinais chinesas, chá preto fermentado, tofu fermentado, molho de soja escuro, presunto seco de Yunnan e cogumelos secos. Na boca é seco, com acidez média-alta, álcool médio, corpo cheio com taninos altos e granulosos, sabores de amoras maduras e soja escura, carnes assadas (kao rou) e aromas terciários complexos. A persistência é longa.

Alguém sabe dizer o que é kao rou? Que gosto tem o presunto seco de Yunnan? Se o molho de soja fosse claro, o vinho seria mais interessante? Estas notas foram compostas com elementos tipicamente chineses (ou, ao menos, típicos em alguma(s) região(ões) chinesa(s) e aparentemente fazem mais sentido para a maioria deles do que as abaixo:

Versão 2

Grená médio+ com lágrimas; o nariz é limpo, em desenvolvimento e de intensidade média+, com aromas de cassis maduro e ameixas vermelhas, cedro, caixa de charutos, couro, cravo e canela, carvalho francês e algumas notas vegetais e de sous-bois (cogumelos). Em boca é seco, com acidez média-alta, álcool médio, corpo cheio com taninos altos e granulosos, mais cassis e ameixas vermelhas maduras, cravo canela e aromas terciários complexos. A persistência é longa.

Ah, bem. Agora sim, você que mora no Brasil e já leu um pouco sobre vinhos ou fez cursos de degustação sabe do que estamos falando, não é? Essas são notas compostas com as referência-padrão do WSET, com elementos considerados “europeus”.

E se fizéssemos uma versão brasileira?

Versão 3

Grená médio+ com lágrimas; o nariz é limpo, em desenvolvimento e de intensidade média+, com aromas de açaí, uma nota de acerola, madeira nova, couro, cravo e canela, um leve mentolado. Em boca é seco, com acidez média-alta, álcool médio, corpo cheio com taninos altos e granulosos, mais açaí, acerola, carne de sol e especiarias. A persistência é longa.

A nota acima foi inventada, mas com descritores aromáticos que se mostram razoavelmente similares aos que podem ser encontrados em um Bordeaux de alto nível com alguns anos de vida. Antes que os conservadores joguem pedras, busquem por favor a goiaba nos vinhos chilenos, a jabuticaba nos alentejanos, as frutas cítricas alaranjadas nos Grenache com um pouco de evolução, a cocada-preta nos Rioja tradicionais e tantos outros perfumes que podemos perfeitamente descrever com elementos bastante “brasileiros”.

É necessário dar impulso a um movimento pela clareza e pela autenticidade ao falar de vinhos e de seus sabores, assim de qualquer outro objeto dos sentidos, da comida às artes plásticas, passando pelo café, música e cinema.

Isso é muito diferente, no entanto, de simplificar as coisas ao extremo, tornando-as superficiais e rasas, em nome de uma aversão à afetação que é, ela mesma, tão esnobe quanto os especialistas chatos.

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